O Mundo Viu Macabéa Tarde Demais
"A Hora da Estrela" (Clarice Lispector, 1977) e "Indomável" (Glennon Doyle, 2020)
Há um tipo de silêncio que não é ausência de som, mas ausência de espaço. Um silêncio moldado ao redor de vidas que foram forçadas a se encolher. É esse silêncio que encontramos em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Publicado em 1977, o romance é, em sua aparente simplicidade, uma das obras mais sofisticadas da literatura brasileira — tanto em sua estrutura quanto na construção simbólica da protagonista Macabéa. Clarice, com sua prosa cortante e introspectiva, não escreve sobre uma mulher: escreve sobre uma condição. E o faz com tamanha habilidade que prova porque é reconhecida como grande nome da nossa literatura.
A personagem central em A Hora da Estrela, Macabéa, parece nunca ter tido permissão para se tornar alguém. A ironia afiada no título se contrapõe ao “apagamento existencial” da protagonista. Não é apenas um romance sobre uma mulher pobre, apagada, ingênua. É, sobretudo, uma denúncia sutil de tudo aquilo que se espera que uma mulher seja quando o mundo não a ensina a ser nada além de conveniente. A protagonista, Macabéa, caminha pela vida como quem pede desculpas por existir. E Clarice joga luz sobre esse apagamento de forma impactante. A dualidade nessa escrita nos deixa o questionamento: o que acontece com uma vida que nunca foi olhada com real interesse?
Clarice pode doer, mas também pode despertar.
Nessa perspectiva, chegamos em Indomável, livro da norte-americana Glennon Doyle. Mesmo escrito décadas depois, publicado em 2020 e em outro contexto cultural, o livro parece dialogar diretamente com essa ausência de voz feminina. Doyle, com sua escrita íntima e ao mesmo tempo feroz, constrói um ensaio-memória sobre o processo de reaprender a escutar a própria verdade. Se Clarice cria um retrato literário da mulher que não sabe que pode desejar, Glennon oferece o testemunho de quem redescobre essa capacidade — e o faz com coragem. Sua escrita é marcada por uma honestidade emocional que desconstrói idealizações e discute o processo, muitas vezes doloroso, de se libertar de narrativas herdadas.
Enquanto Clarice opera no campo da sugestão, da ausência, do que não é dito (um dos traços mais marcantes da sua obra), Glennon abraça a exposição. Sua escrita é confessional, direta, e ainda assim profundamente literária. Há momentos em Indomável em que as frases parecem pulsar como mantras. E esse contraste entre o sussurro de Clarice e o grito de Glennon é justamente o que torna esse diálogo tão potente: uma aponta o que acontece quando uma mulher nunca se percebe como sujeito; a outra mostra o que é possível quando ela, enfim, se reconhece como tal.
Temos duas obras que encaixam nessa experiência de ponte entre o íntimo e o coletivo. Entre o que sentimos e o que ainda não conseguimos nomear. Entre quem fomos, quem somos — e quem, com coragem e escuta, podemos nos tornar. Logo, estreio aqui escrevendo em um lugar de escuta. Nesta coluna, quero propor esse exercício: escutar o que a literatura tem a dizer sobre nós, sobre nossa humanidade— e com isso, talvez, escutar melhor o mundo ao nosso redor. Ler essas autoras não é apenas uma experiência literária; é um gesto de afeto, de atenção e de ampliação do olhar. Que essa coluna seja, então, um espaço para esse tipo de encontro: entre livros e leitores, entre palavras e silêncios, entre quem escreve e quem, de alguma forma, também se vê escrito.
Quero muito saber a opinião de vocês sobre essas obras, então comentem aqui insights, citações, reflexões.... tudo é bem-vindo.
Spill the tea, my friends! On veut du croustillant !
Gentilmente,
Profe Gabs. :)
Livros:
A Hora da Estrela (Clarice Lispector, 1977)
Indomável (Glennon Doyle, 2020)
Uauuuuu! Que texto! Já quero ir na livraria comprar!! Baita texto
Estou em um clube do livro de amigas e amigas das amigas, já fomos de romance a thriller, da cultura brasileira à coreana. Ano passado li 9 livros, e ontem consegui finalizar 11 desse ano. Minha lista está bem diversificada e está sendo um prazer voltar a ler (tanto). Acho lindo quem lê e quem instiga a leitura! :)